Nenhuma família está isenta de problemas e infortúnios. As crises e eventos estressantes afetam toda a família e apresentam riscos para o indivíduo e para as relações familiares. Como assevera Whitaker e Bumberry, a habilidade em manejá-los é fundamental para o crescimento e a sobrevivência do grupo familiar. Essas crises podem ser previsíveis, estando presentes nos vários ciclos de vida familiar, ou mesmo imprevisíveis, tal como falecimento inesperado de um membro, desemprego, divórcio etc.
Definir a qual ciclo de vida familiar a família pertence é importante, pois ajuda a compreender as principais necessidades da família, trabalhos preventivos a serem desenvolvidos, esclarecimentos sobre as questões específicas do ciclo – auxiliando a família a resolver problemas, ou seja, oferecendo ajuda específica para a fase vivenciada. A partir do princípio da longitudinalidade, observamos as mudanças e a reorganização do grupo familiar na passagem de uma fase para outra, dando apoio segundo as necessidades vigentes (FERNANDES; CURRA, 2006).
São os ciclos convencionais para as famílias de classe média e alta (FERNANDES; CURRA, 2006):
adultos jovens independentes;
nascimento do primeiro filho;
famílias com filhos pequenos;
famílias com filhos adolescentes;
ninho vazio: a saída dos filhos;
aposentadoria;
famílias no estágio tardio: a velhice.
São os ciclos convencionais para as famílias de classe popular:
família composta de jovem adulto;
família com filhos pequenos;
família no estágio tardio.
As crises podem desafiar o sistema familiar a aprimorar habilidades e a desenvolver recursos, pois fatores de estresse podem ser potenciais estimuladores de competências. O que distingue a família saudável não seria a ausência de problemas, mas sim a maneira de enfrentá-los e a competência para resolvê-los (WALSH, 2003; 2005).
De acordo com o Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental lançado em 2011 (CHIAVERINI, D.H. et al.2011) entendimento do momento do ciclo de vida familiar é fundamental para identificação de problemas comuns na APS e a forma de encaminhá-lo, e apresenta problemas comuns a cada um dos ciclos de vida familiar, orientando os impactos mais comuns em nossa atuação na APS:
Formação do casal
Compromisso na relação – É comum na APS casais formados depois de uma gravidez. Muitas vezes, são jovens que atropelam seus processos de amadurecimento.
Redefinir relação com a "família extensa" – Muitas vezes na APS surgem mães que não aceitam filhas que vão viver junto com jovens envolvidos com tráfico.
Gravidez e parto
Acolher a criança – Múltiplos filhos, condições socioeconômicas desfavoráveis. Mães adolescentes. Mães que mal saem do parto e têm que voltar ao trabalho. Essas condições dificultam que o desenvolvimento do neonato alcance sua potencialidade.
Ser pais e esposos – É comum filhos de pais diferentes na mesma família, e a tarefa de cuidar dos filhos recai sobre a mulher ou a avó, ou até sobre uma cuidadora profissional.
Família com crianças pequenas
Formar equipe parental – A noção de equipe para os pais é importante não só em seu início, mas permanentemente. Entretanto, é frequente vermos conflitos de tal ordem que parece um time de futebol que não sabe onde fica o gol, nem a camisa que está vestindo. Como copartícipe dessas questões, é frequente encontrarmos o alcoolismo do pai.
Negociar relação com a família extensa – Muitas vezes a negociação que se consegue é a de oferecer algum cuidado às crianças enquanto as mães trabalham. Cuidado este vital se os pais são dependentes químicos e vivem a relação com as drogas como prioritárias, abandonando e/ou negligenciando os filhos.
Família com adolescentes
Relação com filho passa a movimentar-se dentro e fora do grupo familiar – Este é o momento de grande risco de abandono da escola. As adolescentes muitas vezes engravidam e os meninos começam a aproximação com o tráfico, principalmente se a função paterna está ausente.
Adulto jovem
Reenfocar assuntos maritais e profissionais – A questão profissional aqui surge com toda a força. É comum encontramos pessoas desempregadas e dependentes dos pais (frequentemente só da mãe).
Enfrentar incapacidade/morte de pais – A morte de pais que na verdade continuam como provedores, em função de alguma pensão, pode ser catastrófica para quem fica.
"Ninho vazio" – Como o desenvolvimento não se deu plenamente, em função das condições familiares e sociais adversas, as dependências emocionais e econômicas se mantêm e a síndrome do ninho vazio não tem maior importância na APS. Ela é frequentemente substituída por luto patológico de filhos que tiveram mortes violentas.
Contração familiar
Manter funcionamento apesar das perdas – Em função das perdas precoces por doença ou violência, é comum termos que lidar com luto patológico e depressão.
Morte e luto
Enfrentar perda de esposos, família, amigos – A questão dos idosos é um capítulo à parte, mas nossa maior tarefa é lidar com idosos deprimidos e com sérias restrições sociais.
Preparação para a própria morte – Aceitar a própria morte está diretamente ligado à satisfação com a vida. Isto é, quem viveu de bem com a própria vida tem menos medo da morte e da finitude. Nesta etapa da vida, nosso papel é de acolhimento e vínculo.
(CHIAVERINI, D.H. et al.2011 Guia Prático De Matriciamento Em Saúde Mental pg. 154)
O conceito de resiliência familiar abrange mais do que a reunião de condições satisfatórias para manejar estresse e suportar ou sobreviver a situações traumáticas ou provações. Envolve o potencial de crescimento e transformação que pode ser desenvolvido nas relações familiares e em seus membros em situações de adversidade. Intervenções focadas no fortalecimento dos processos adequados podem maximizar o potencial para a resiliência que todas as famílias apresentam. Os processos familiares medeiam o impacto do estresse em todos os membros das famílias e em seus relacionamentos, estimulando a resiliência ou aumentando a vulnerabilidade (WALSH, 2003; 2005).
Froma Walsh identifica alguns processos favorecedores da resiliência familiar que podem ser estimulados pelas equipes de saúde (WALSH, 2005):
Extrair significado da adversidade. Administração das crises como desafios valorizando relações saudáveis e procurando contextualizar o sofrimento.
Perspectiva positiva. Manutenção da esperança, concentração no potencial e enfrentamento do possível.
Flexibilidade nos padrões organizacionais. Competência para a mudança e segurança durante a perturbação.
Senso de conexão. Capacidade de compromisso, liderança e respeito às diferenças e limites individuais. Busca de reconciliação em relações perturbadas.
Mobilização de recursos sociais e econômicos. Família ampliada, redes comunitárias de apoio e segurança.
Favorecimento da clareza comunicacional. Mensagens consistentes, esclarecimento de ambiguidades.
Estímulo à expressão emocional aberta. Compartilhamento de sentimentos e empatia. Valorização do humor.
Resolução colaborativa. Tomada de decisões compartilhada e concentração em objetivos.