Gestão da clínica e do trabalho em equipe
Problemas, necessidades e planos individuais
Centraremos a discussão do cuidado individual no caso de Dona Margarida.
Dona Margarida
Dona Margarida é uma pessoa idosa, e é característica dessa fase da vida a presença concomitante de múltiplas condições e problemas crônicos de saúde, eventualmente evoluindo com agudizações ou novos problemas, quadro conhecido na literatura como "multimorbidade". Esse panorama é de grande complexidade de gestão e gerenciamento clínico, sendo imprescindível um modelo de atenção em saúde adequado, que atue com base na integralidade e na coordenação de cuidados de forma interdisciplinar – sendo então a APS e a ESF cenários privilegiados para esse tipo de atuação.
O caso apresenta informações detalhadas sobre Dona Margarida, e assim podemos identificar inicialmente alguns problemas e necessidades de saúde, listados a seguir com a respectiva tentativa de classificação CIAP, que é de uso multiprofissional. Vejamos uma possível lista de problemas para Dona Margarida, pensando no RCOP:
Pelas características dos problemas urinários agudos de Dona Margarida, podemos pensar num quadro sindrômico de infecção do trato urinário (ITU), associado à condição crônica de incontinência urinária. É possível também identificar uma piora cognitiva e um quadro alucinatório a partir de um quadro orgânico infeccioso, o que chamamos de delirium. Dona Margarida também apresenta diversos problemas ativos de saúde bucal, que têm interferido na sua capacidade de se alimentar, afetando provavelmente seu estado nutricional.
Nesta situação é imprescindível que o plano de cuidados para os problemas agudos de Dona Margarida também leve em consideração suas condições crônicas, especialmente o quadro demencial, o que torna ainda mais complexo o manejo do caso de forma integral (veja mais em Atenção Domicilar).
Nesse mesmo sentido, para o seguimento longitudinal de Dona Margarida, a equipe poderia propor um projeto terapêutico de cunho interdisciplinar, com base nos principais problemas e necessidades referidos e identificados, priorizando ações e estabelecendo metas e papéis para cada membro da Equipe de Saúde da Família. É importante que se defina um profissional que faça o papel de coordenador dos cuidados voltados para Dona Margarida, para garantir que haja efetivamente um seguimento coordenado para o caso.
Vale notar o possível problema de continuidade do cuidado devido ao que é relatado no caso, pois já havia uma lista de problemas prévia que apontava para os principais problemas de Dona Margarida, e mesmo assim a paciente continuava sem abordagem integral de seus problemas e necessidades, "reagudizando" alguns quadros com certa frequência.
Durante a abordagem de Dona Margarida, também aparece uma questão importante de saúde pública nos dias de hoje, que são os protocolos de rastreamento. Foram comentados alguns exames que lhe haviam sido solicitados, como colesterol, glicemia e mamografia. Poderíamos pensar ainda em outros procedimentos, como o rastreamento de cânceres de colo uterino e de intestino. Haveria indicação para esses tipos de rastreamento, em relação à literatura e às condições específicas de Dona Margarida? É importante destacar que o termo "rastreamento de doenças" refere-se a quando há investigação em quadros assintomáticos, para diagnóstico precoce.
Confira uma discussão mais ampla sobre o tema nos endereços http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad19.pdf e http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/cadernos_ab/abcad29.pdf.
Pelo quadro demencial, que já é uma síndrome com múltiplos sintomas, cabe a realização de alguns exames para investigação de causa ou fatores associados. Veja mais na fundamentação teórica Demência.
Outra questão a ser levantada seria a de como fazer o registro, em formato SOAP, dos atendimentos de Dona Margarida. Uma possibilidade é apresentada sumariamente a seguir, com base nas informações do caso:
1ª consulta
S |
. Dra. Joana foi chamada para atender em domicílio Dona Margarida, de 75 anos. Margarida teve três filhos com o marido e mora agora na companhia de sua filha mais nova, Jandira, de 54 anos, e de sua neta Inês, de 32. Jandira é divorciada de João e trabalha como diarista; Inês é manicure. O atendimento domiciliar foi solicitado de urgência. |
O |
. Apresentava quadro de disúria, algúria e dor suprapúbica de sete dias de evolução, sem febre. |
A |
. Infecção do trato urinário; . Necessidade de tratamento de urgência / falta de acompanhamento coordenado, integral e continuado. |
P |
. Iniciar tratamento empírico com Sulfametoxazol+Trimetoprim 800/160 BID por sete dias; . Revisar em dois dias; . Levar o caso para a discussão da reunião de equipe, de forma a ampliar a rede de cuidados e cuidadores; . Estabelecer um projeto terapêutico para Dona Margarida em conjunto com a família. |
2ª Consulta
S |
. Dra. Joana vai ao domicílio de Dona Margarida e, ao cumprimentá-la, esta não a reconhece. Jandira (filha) refere que este sintoma está presente há aproximadamente cinco anos. Atualmente apenas lembra-se claramente de coisas da sua infância e adolescência. Troca o nome da neta. Dona Margarida, ao ser incentivada, narra sua história de vida com foco no relacionamento de amor com o marido já falecido. Não apresenta sintomas cardiovasculares nem pulmonares, tem incontinência urinária de longa evolução (geralmente ligada a esforços e tosse). Não faz uso de medicações contínuas. Jandira mostra expectativa quanto aos possíveis "remédios" para a situação de sua mãe. Jandira refere que Margarida queixa-se de dores nos dentes, e que tem dificuldade em se alimentar devido ao problema. |
O |
. Corada, hidratada, sem edemas; . PA – 130 x 80 mmHg; FC – 88 bpm; . Sem sinais neurológicos focais; . Bulhas cardíacas sem alterações; . Murmúrio vesicular fisiológico, com ruídos descontínuos inspiratórios em bases pulmonares (crepitações); . Desconforto à palpação suprapúbica; . Lesões nas comissuras labiais (queilites). |
A |
. Quadro demencial; . Lesões em boca e dentes; . Dificuldade para se alimentar. |
P |
. Plano de acompanhamento longitudinal e coordenado em equipe; . Orientações de segurança e risco de queda; . Discutir em equipe maneiras de incluir outros membros da equipe no cuidado, principalmente a equipe de saúde bucal; . Discutir formas de ampliar a rede de cuidadores de Dona Margarida; . Apoiar Jandira no cuidado a Dona Margarida. |