Sérgio
Gustavo Gusso


A incerteza, a consulta, a medicina centrada na pessoa e os riscos

Agendas

No seu livro A Nova Consulta, Pandleton insiste em alertar para a prática corriqueira na Atenção Primária de impor uma "agenda" ao paciente. Isso ocorreu no caso de Sérgio e é uma constatação grave. A Atenção Primária é conhecida como um ambiente onde se pratica prioritariamente promoção e prevenção. Para muitos pesquisadores e líderes da área, como Juan Gérvas, Marc Jamoulle, Iona Heath, Barbara Starfield, entre outros, esse é um dos fatores para o desprestígio da APS. É preciso entender o que é prevenção ou quais as dimensões da prevenção. Geoffreu Rose (1992), em seu clássico livro Estratégias da Medicina Preventiva, define prevenção primária e secundária como aquelas que ocorrem antes e depois de um evento. Porém o conceito mais difundido é de Leavell e Clark (1976), que ainda na década de 1960 desenvolveram o conceito de prevenção primária (antes de o problema ocorrer), secundária (diagnóstico precoce antes do sintoma) e terciária (reabilitação). Na década de 1990, Marc Jamoulle desenvolveu o conceito de prevenção quaternária, que está descrito no dicionário da Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA) como "ação feita para identificar um paciente em risco de supermedicalização, para protegê-lo de uma nova invasão médica e sugerir a ele intervenções eticamente aceitáveis" (GUSSO, 2009) (Figuras 1 e 2).

Figura 1 – Prevenção segundo história natural da doença (LEAVELL; CLARK, 1976):




O modelo de Leavell e Clark estava equivocado porque lidava com a história natural das doenças, mas nem sempre as pessoas têm uma doença. Entretanto, para o caso em questão e para o que pretendemos discutir agora, mesmo no modelo de Leavell e Clark, podemos inferir que as atividades preventivas não se resumem a diagnóstico precoce ou promoção à saúde.

Figura 2 – Prevenção quaternária (KUEHLEIN, 2010; BENTZEN, 2003; GUSSO, 2009)


Atender as pessoas e avaliar exaustivamente os sintomas ou queixas na sua fase mais incipiente e, portanto, de maior incerteza, também é prevenção (terciária ou quaternária). Por vários motivos, os profissionais da saúde, em especial no Brasil, não identificam atividades como acolhimento, consultas do dia ou demanda espontânea como atividades de prevenção. As principais razões são a demanda grande (áreas com quatro mil ou mais pessoas para um médico e uma enfermeira, que acabam ficando responsáveis por grande parte das consultas), a influência histórica da medicina preventiva e da saúde coletiva na Atenção Primária e o passado de ações programáticas e verticais.

Esses fatores fazem com que os profissionais acabem privilegiando a agenda de prevenção primária e secundária, que na Figura 2 estão nos quadrantes superiores, ou seja, correspondem justamente às situações em que os pacientes não se sentem mal. Isso faz com que tanto a agenda dos profissionais seja motivo de disputa entre ações de prevenção primária/secundária versus terciária/quaternária quanto a consulta em si seja palco dessa dicotomia. Assim, é tarefa do profissional fazer um balanço entre as quatro modalidades de prevenção, não esquecendo que, se não der atenção às queixas, em especial quando são vagas, os pacientes tenderão a tencionar por furar o sistema de saúde, procurando um subespecialista, um hospital ou uma emergência.


Nesse processo, é fundamental que haja sempre discussões de casos difíceis na Unidade para que os profissionais se sintam encorajados a continuar valorizando as quatro modalidades de prevenção sem privilegiar apenas uma ou duas, ou seja, buscando sempre um equilíbrio e tentando entender por que têm dificuldade com uma ou outra modalidade. Sem dúvida, a mais difícil de lidar é a quaternária, que é o caso de Sérgio, porque o paciente traz problemas indiferenciados, sendo impossível fechar um diagnóstico etiológico. Um desfecho trágico para este caso seria o paciente aceitar o tratamento para hipertensão na Unidade de Saúde e procurar um psiquiatra que poderia receitar benzodiazepínico e/ou antidepressivo para a insônia e a irritabilidade.

Além das discussões, o trabalho de filmagem das consultas, feito sob orientação e seguindo os preceitos éticos com coleta de consentimento livre e esclarecido dos pacientes – explicando que a consulta será usada estritamente para fins didáticos e assegurando que o profissional filmado será o guardião do material e que não é feita filmagem do exame físico – é um excelente método para os profissionais observarem o quanto muitas vezes as prioridades dos médicos e dos pacientes estão distantes.

Especialização em Saúde da Família
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