Os impasses ou dificuldades do SUS

Apesar dos inegáveis avanços, a construção e implementação do SUS tem sido empreendida a despeito de vários entraves, entre os quais destacamos, para os propósitos do presente texto, apenas alguns que mais impactam diretamente no seu trabalho no âmbito da estratégia de saúde da família:

a) O subfinanciamento, isto é, os recursos destinados à operacionalização e ao financiamento do SUS, fica muito aquém de suas necessidades.

É comum ouvirmos que o Brasil já gasta um valor considerável do seu PIB com saúde e que o nosso problema é “a falta de gestão”. Será que isso é mesmo verdade?

O subfinanciamento do SUS é histórica. A Constituição de 1988 estabeleceu que o SUS seria financiado com os recursos do Orçamento da Seguridade Social, além de outras fontes. Porém, a partir da posse de Fernando Collor, passa a ser empreendido uma concepção neoliberal, antagônica aos princípios e diretrizes do SUS. A direção política passou a ser a de contenção de gastos públicos e diminuição dos investimentos em políticas sociais, como a de saúde.

O indiscutível subfinanciamento do SUS decorre do fato de que seu mandamento constitucional generoso não foi acompanhado de dispositivos que garantissem, do ponto de vista econômico, seus princípios. A implantação dos novos direitos sociais coincidiu com um período de hiperinflação e restrições macroeconômicas. O movimento mundial da Reforma do Estado, pautado pelos objetivos do sistema financeiro, expressa-se no Brasil com grande crescimento do setor privado e fortalecimento das regras de mercado na saúde e na previdência social, por meio das seguradoras privadas, e um alto crescimento da dívida pública, que impediu o aumento dos orçamentos da área social, incluindo a saúde (MENDES; MARQUES, 2009; PAIM et al., 2011; CHIORO DOS REIS et al, 2017).

O crescimento dos gastos com aposentadorias e pensões consumiu parcelas crescentes do Orçamento da Seguridade Social. Em 1993, a receita de contribuições de empregados e empregadores, uma fonte tradicional de financiamento da assistência médica (representando um terço do orçamento do Ministério da Saúde), passou a financiar exclusivamente o pagamento de benefícios previdenciários, impondo ao Ministério da Saúde o endividamento para pagar as despesas de custeio. (BRASIL, 2007)

Diante deste cenário, alguma medida havia de ser tomada para financiar a saúde. Desta forma, em 1996, contando com o prestígio do então Ministro da Saúde Adib Jatene, foi aprovada a CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira). Mas, de acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) (BRASIL, 2007) a CPMF funcionou como uma fonte substitutiva, ou seja, “a incorporação de seus recursos correspondeu, quase na mesma proporção, a diminuição de outras fontes” (BRASIL, 2007 p.28).

Durante a década de 90 não havia nenhum parâmetro legal que obrigasse os Estados, Distrito Federal e municípios a destinarem recursos próprios para a área de saúde (CAMPELLI e CALVO, 2007). A economia, bem como as políticas públicas de financiamento do SUS no âmbito da União eram instáveis, utilizando-se de medidas emergenciais e provisórias para fazer frente à falta de recursos para o setor (GIOVANELLA et al., 2012)

A Emenda Constitucional 29 (EC-29) (BRASIL, 2000) foi criada com o objetivo de superar os problemas de financiamento do SUS (CAMPELLI e CALVO, 2007). A EC-29 determinou a vinculação e estabeleceu a base de cálculo e os percentuais mínimos de recursos orçamentários que a União, os Estados, Distrito Federal e municípios seriam obrigados a aplicar em ações e serviços públicos de saúde (CAMPELLI e CALVO, 2007).

Porém, a regulamentação da EC 29 indicando com clareza o conceito de ações e serviços públicos de saúde (ASPS) só ocorreu em 2012, com a aprovação da Lei Complementar 141), quando finalmente foi definido o que são considerados gastos com ações e serviços públicos de saúde e o que não pode ser considerados sob esta rubrica.

A Lei Complementar 141/2012 ratificou o que já estava previsto na EC-29: a União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos e os municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos. A Lei Complementar 141 teve um papel fundamental para orientar os respectivos Tribunais de Contas e os Conselhos de Saúde no processo de fiscalização do cumprimento da Emenda Constitucional 29.

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O Ministério da Saúde produziu um filme que ajuda a entender melhor a Lei Complementar 141 e que pode ser acessado em: www.youtube.com/watch?v=ZFoZl1KarOE

A EC-29 levou a um crescimento dos recursos aplicados em ASPS de 2,9% em 2000 para 4,7% do PIB em 2013 (OECD, 2013). Em 2014, os estados aplicaram em ASPS R$ 57,4 bilhões (27%), os municípios, R$ 65,3 bilhões (30%) e a União, R$ 92,6 bilhões (43%). Entre 2003 e 2015, o gasto federal em ASPS evoluiu de R$ 27,2 bilhões para R$ 99,2 bilhões, mais do que triplicando em termos nominais.

Em 2012, diversas entidades da sociedade civil lançaram o Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública (Movimento Saúde+10), propondo um Projeto de Lei (PL) de iniciativa popular, com mais de 1,9 milhão de assinaturas, com o objetivo de alterar o valor mínimo a ser aplicado pela União. O Saúde+10 propunha a destinação de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde pública. No entanto, foi aprovada a EC nº 86/2015, tornando obrigatória a execução das emendas parlamentares individuais e alterando a regra de vinculação dos recursos federais para a saúde (BRASIL, 2015a). Mas isso durou muito pouco.

No final de 2017, entretanto, com a aprovação do Novo Regime Fiscal, a EC 95/2017, que limita os gastos públicos federais, o orçamento do Ministério da Saúde, nas próximas duas décadas, será reajustado apenas pela apuração da inflação (medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA), conforme já discutido anteriormente. As despesas da União com saúde cairão de 43% para 30% do total até 2022. Estados e municípios, que, em 2015, representaram 57% das despesas de saúde, passarão a ser responsáveis por 70% dos gastos em 2022. A União, portanto, responderá por menos de um terço das despesas totais em ASPS em 2022 (SÓTER; MORETTI, 2016). Como os outros entes federativos não terão capacidade de financiar mais de 70% dos recursos do SUS, diante da regra proposta para o piso da saúde, é forte a probabilidade de um cenário de caos para os próximos anos, apontando para o risco de redução da oferta de serviços e o encolhimento ou inviabilização total do SUS.

A verdade é que, embora o gasto com saúde já represente mais de 9% do PIB, continua sendo majoritariamente feito às custas dos gastos privados. Embora toda a população use o SUS, - pois mesmo aqueles que tem planos de saúde ou podem pagar por atendimento particular se beneficiam do SAMU, da assistência farmacêutica, das vacinas, transplantes, sangue, das ações de vigilância sanitária e epidemiológica, entre outras -, o percentual do PIB em gasto público (4,7%, em 2003) é inferior ao gasto privado (5%).

Para quem trabalha no âmbito da Estratégia Saúde da Família, tal insuficiência de recursos é sentida, principalmente, quando há necessidade de se acessar os outros níveis de maior complexidade do sistema, cuja oferta parece sempre aquém das demandas. Por exemplo, em 2014, o Brasil destinou apenas 436 dólares por habitante para gastos públicos em saúde. O Reino Unido, que tem um excelente sistema universal de saúde, destinou no mesmo ano 3.935 dólares.

O gasto público em saúde, em 2018, foi de apenas R$ 3,80 por habitante/dia, valor menor do que uma passagem de ônibus em qualquer cidade brasileira (e só a de ida).

Você já imaginou uma operadora de plano de saúde garantir saúde integral (da vacina ao transplante), como é a obrigação constitucional do SUS, com apenas R$ 114 por habitante/mês? Ou cobrando do usuário R$ 1.368 por ano?

Pois é. Foi esse valor que o SUS pode contar em 2018, somando-se os gastos da União, dos estados e municípios.

Será que o problema é mesmo falta de gestão ou de recursos suficientes?

 

b) As insuficiências da gestão local do SUS. A gestão municipal dos recursos do SUS vem funcionando com muitas dificuldades e limitações – sem desconsiderar que os recursos para o SUS são insuficientes. A gestão municipal é idealizada pelo projeto da Reforma Sanitária Brasileira como mais eficaz, porque “estaria mais próxima dos cidadãos” e mais sensível aos seus anseios. O SUS denomina como “gestão local” o conjunto de atividades desenvolvidas pelos gestores municipais, visando à operacionalização, na prática e em seus contextos sociopolítico-institucionais singulares, das grandes diretrizes políticas do SUS.

Pesquisadores do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo realizaram pesquisa em 20 pequenos municípios de duas regiões de saúde próximas a São Paulo. Por serem municípios pequenos, estes funcionaram como um verdadeiro “laboratório” de observação das reais condições de operacionalização em muitos municípios brasileiros, já mais de 73% dos municípios do país têm menos de 20 mil habitantes. Vejamos alguns dados sobre a operacionalização real do SUS mostrados pelo estudo (CECÍLIO et al., 2007):

A baixa resolutividade da rede básica de serviços montada no país desde a década de 1980, mas acelerada nos anos 1990, fruto de uma gestão do cuidado desqualificada, em particular pela realização de uma clínica degradada, pela baixa capacidade de construção de vínculo e produção de autonomia dos usuários. Tem havido grande dificuldade de produção de alternativas de cuidado ao modelo biomédico e sua poderosa articulação com o complexo médico-industrial e acelerado processo de incorporação tecnológica. Isso tem resultado em encaminhamentos desnecessários e excessivos e alimenta as filas de espera em todos os serviços de média e alta complexidade, além de resultar na fragmentação dos cuidados prestados; na repetição desnecessária de meios complementares de diagnóstico e terapêutica; numa perigosa poliprescrição medicamentosa; na confusão e no isolamento dos doentes; e inclusive na perda de motivação para o trabalho por parte dos clínicos da rede básica.

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O modelo biomédico (biomedicina) é construído a partir da forte ênfase e valorização da materialidade anatomofisiológica do corpo humano e a possibilidade de se produzir conhecimentos objetivos sobre seu funcionamento normal e suas disfunções, o que permitiria “intervenções” para a volta à “normalidade”. Esse seria o papel principal da medicina. Metaforicamente, podemos dizer que o corpo é pensado como uma “máquina”. É inegável que a medicina tecnológica, mesmo operando com tal modelo “reducionista”, tem contribuído para uma formidável melhoria nos indicadores de saúde, inclusive para o aumento da perspectiva de vida. No entanto, hoje temos a compreensão de que é necessário operar com uma combinação mais complexa de saberes, enriquecida por outras contribuições além da biomedicina (psicanálise, psicologia, ciências humanas, saberes populares etc.), se quisermos ampliar no sentido de produzir um cuidado mais integral.

• Os modelos assistenciais e consequentes modos de organização de processos de trabalho adotados na rede básica de saúde têm resultado, quase sempre, em pouca flexibilidade de atendimento das necessidades das pessoas e em dificuldade de acesso aos serviços em seus momentos de maior necessidade, fazendo aumentar a demanda desordenada pelos serviços de urgência/emergência.

Deficiência na formação dos profissionais de saúde, ainda muito centrada em práticas curativas e hospitalares, com consequente dificuldade de desenvolvimento de práticas mais integrais e resolutivas de cuidado, incluindo a capacidade de trabalhar em equipe, implementar atividades de promoção e prevenção em saúde e ter uma postura mais ética e cuidadora dos usuários do SUS.

Deficiência na gestão dos sistemas locorregionais de saúde que se traduz em: a) baixa capacidade de fazer uma adequada regulação do acesso aos serviços de saúde voltada para seu uso mais racional e produtivo; b) baixíssima ou quase nula capacidade de gestão do trabalho médico, em particular avaliação e acompanhamento da produtividade, qualidade do trabalho e resolutividade desses profissionais; c) baixa capacidade de planejamento/programação de serviços a partir de indicadores epidemiológicos e estabelecimento de prioridades para alocação de recursos; d) pouca ou nenhuma prática de priorização de “gestão de casos” em situação de alta vulnerabilidade dos pacientes com o objetivo de garantir o uso dos múltiplos recursos necessários para o cuidado de forma mais racional e integrada.

• O forte protagonismo dos usuários, que ainda fazem uma clara valorização do consumo de serviços médico-hospitalares; a garantia de acesso ao atendimento mais rápido em serviços de urgência/emergência; e a busca por segurança e satisfação na utilização de tecnologias consideradas mais potentes, em particular a utilização de fármacos; a realização de exames sofisticados; e o acesso a especialistas. Tais percepções seriam componente importante da explicação da demanda sem fim por atendimento médico que desqualifica todos os parâmetros de programação e planejamento dos serviços de saúde.

Todas essas explicações talvez pudessem ser dispostas na forma de uma complexa rede causal que, mesmo tendo seus “nós críticos”, acabam todas, de uma forma ou de outra, contribuindo para a formação de filas, demora no acesso e longas esperas. Em última instância, reforçando a reconhecida insuficiência de recursos necessários para o atendimento às necessidades das pessoas.

Santos, falando das dificuldades do SUS (SANTOS, 2007), aponta para problemas parecidos. Observe:

a) a atenção básica expande-se às maiorias pobres da população, mas na média nacional estabiliza-se na baixa qualidade e resolutividade, não consegue constituir-se na porta de entrada preferencial do sistema, nem reunir potência transformadora na estruturação do novo modelo de atenção preconizado pelos princípios constitucionais;

b) os serviços assistenciais de média e alta complexidade cada vez mais congestionados reprimem as ofertas e demandas (repressão em regra iatrogênica e frequentemente letal);

c) os gestores municipais complementam valores defasados da tabela do SUS na tentativa de aliviar a repressão da demanda, nos serviços assistenciais de média e alta complexidade;

d) com o enorme crescimento das empresas de planos privados, e consequente agressividade de captação de clientela, as camadas médias da sociedade, incluindo os servidores públicos, justificam e reforçam sua opção pelos planos privados de saúde;

e) as diretrizes da integralidade e equidade pouco ou nada avançam;

f) a judicialização do acesso a procedimentos assistenciais de médio e alto custo às camadas média-média e média-alta da população aprofunda a iniquidade e a fragmentação do sistema;

g) o modelo público de atenção à saúde vai se estabilizando em pobre e focalizado aos 80% pobres da população, e em complementar e menos pobre aos 20% compradores de planos privados.

 

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Entende-se como judicialização do acesso a utilização de ações judiciais, amparadas no princípio constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado, para garantir o acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo. Apesar de ser, em princípio, a realização de um preceito constitucional, vários gestores e autores apontam para distorções provenientes da articulação entre os interesses das indústrias de medicamentos e equipamentos e alguns médicos que fariam a "justificativa" de suas indicações sem critérios técnicos bem definidos. Outro problema apontado é que os estratos mais pobres da população, com menos acesso a um advogado, acabam sendo preteridos em relação àqueles com melhores condições econômicas, resultando na iniquidade apontada pelo autor. Ou seja, a judicialização, em muitas situações, é produtora de mais iniquidade e injustiça social.