Famílias em situação de vulnerabilidade ou risco psicossocial

Ana Cristina Belizia Schlithler, Mariane Ceron e Daniel Almeida Gonçalves

A abordagem familiar das famílias em risco psicossocial

Antes mesmo de abordarmos as famílias em risco, vulneráveis ou mesmo já com algum tipo de disfuncionalidade, é importante refletirmos sobre: o que é uma família saudável? O que devemos esperar de normal das famílias que cuidamos?

A família saudável

Carl Whitaker (1912-1995), psiquiatra americano e um dos fundadores da terapia familiar, afirma que tendemos a utilizar nossos próprios critérios. Quem teve um pai presente e participativo, por exemplo, naturalmente tenderia a considerar pouco saudável uma família com um pai distante ou ausente. Embora esse movimento seja natural, o autor pontua que, assim como não desejamos ser julgados ou avaliados a partir do referencial do outro, não devemos fazê-lo.

Citaremos as características arroladas por Whitaker e Bumberry (1990) como necessárias para a família saudável, pois resumem satisfatoriamente o que diversos outros autores propõem:

  • A família saudável é dinâmica, e não estática, ou seja, é um sistema em contínuo processo de evolução e mudança;
  • Suas regras servem de guia e estão a serviço do crescimento;
  • Há uma clara separação entre as gerações de forma que os pais (ou adultos que as representem) transmitam às crianças uma sensação de segurança embasada em liderança e solidariedade;
  • As crises e conflitos provocam desenvolvimento, e não rompimento;
  • Existe espaço para expressar e compartilhar intimidade e sentimentos, mesmo aqueles conotados como negativos;
  • Seus membros sabem usufruir do intercâmbio de experiências entre as gerações;
  • Funciona como um organismo aberto que se relaciona com outros e é capaz de incorporar novos elementos.

Observe que estes autores não mencionam um tipo de configuração relacionado à família saudável. As características que enumeram estão associadas ao funcionamento do sistema familiar e às funções da família.


    Devemos estar atentos à relação que o grupo familiar estabelece com as mudanças e novas necessidades que surgem. Por vezes os adultos mostram-se enrijecidos em seus costumes frente às demandas dos mais jovens. Valores e regras devem ser claros, mas a maneira de garantir que sejam preservados requer flexibilidade. Do mesmo modo, os jovens podem ser instados a compreender as dificuldades dos membros mais velhos da família em adaptar-se às novas necessidades, por meio de relatos sobre experiências passadas em seu período de crescimento.

Muitos autores destacam a questão das regras familiares. Sabemos de sua importância fundamental. O quão são rigorosas dependerá dos valores e crenças de cada grupo familiar. Importa mais que sirvam a toda a família, e não apenas a determinados membros, já que regras que contemplam apenas as necessidades dos adultos (ou das crianças) dificilmente são cumpridas. O essencial é que sejam claras, e seu cumprimento seja uma meta. Podem ser negociadas e revistas, desde que essa negociação reflita alguma necessidade de adaptação a novas demandas.

O tema dos papéis familiares e suas funções é também central para a compreensão e o trabalho com famílias. Os adultos, sejam eles o pai, a mãe, os avós, os tios ou quaisquer outras pessoas que convivam como família, têm responsabilidade em relação às crianças. Crianças que ficam encarregadas dos cuidados com a casa ou com os irmãos menores desempenham um papel para o qual ainda não estão preparadas, ficando sobrecarregadas, o que pode acarretar problemas emocionais. Sabemos que, em nossa realidade, muitas vezes os adultos que trabalham precisam ficar muitas horas fora de casa, e a falta de escolas, núcleos socioeducativos e creches tem como consequência crianças sozinhas em casa.


    Em alguns lares, o filho pode buscar desempenhar o papel de um pai que tenha deixado a família, procurando para isso exercer precocemente uma autoridade para a qual não dispõe de recursos, desencadeando conflitos e estresse.

As intervenções junto às famílias devem buscar garantir o acesso aos recursos adequados. As famílias podem ser orientadas sobre a importância de garantir às crianças a retaguarda de um adulto, momentos para usufruir de suas necessidades de criança e adequação quanto ao cumprimento das tarefas da casa em relação à faixa etária.

Em algumas famílias, os adultos procuram exercer sua necessária autoridade recorrendo a modelos dominadores, ou flexibilizando tanto as regras a ponto de permitirem significativos questionamentos a essa autoridade. Da mesma forma, em alguns lares encontramos adolescentes e jovens que adquirem um poder desproporcional à sua idade, muitas vezes por meio da transgressão de regras e da dificuldade dos adultos de desempenhar o seu papel. Alguns adultos precisam de ajuda para sentirem-se fortalecidos ao exercer a autoridade diante de tantos e tão diversos desafios.

    Muito se discute sobre diferenças entre o papel do pai e da mãe. Com a frequência de famílias monoparentais, em que a mãe é o único adulto presente, e com as alterações em seu papel de dona de casa (para o de trabalhadora que acumula as jornadas de trabalho fora e dentro de casa), observamos mulheres sobrecarregadas e por vezes com dificuldades para desempenhar a necessária autoridade com as crianças. A ausência do pai ou de outro membro adulto realmente gera sobrecarga, mas não inviabiliza o ambiente familiar saudável e voltado para o crescimento se a mãe for capaz de garantir (ou puder caminhar a fim de garantir) que as características que integram as famílias saudáveis estejam presentes em seu lar.

Os serviços e recursos comunitários e uma política social que contemple as demandas familiares, como a garantia de acesso a creches, jornada de trabalho adequada, transporte públicos que não impliquem a permanência de longos períodos fora de casa, poderiam auxiliar as famílias nesse sentido.

A identificação precoce de papéis disfuncionais que geram sofrimento, e não crescimento, pode ser realizada por profissionais de saúde que acompanham famílias. Tais papéis devem ser abordados de modo que não se cristalizem ou originem fissuras graves no sistema familiar.

O quinto item mencionado por Whitaker e Bumberry é tão essencial quanto pode ser difícil. O espaço para compartilhar sentimentos e intimidade na família muitas vezes precisa ser conquistado. Diferentes experiências que cada membro do casal traz de sua família de origem podem colocar barreiras na expressão de sentimentos. Da mesma forma, diferenças entre as gerações podem se tornar obstáculos para que os sentimentos fluam facilmente entre as pessoas que compõem a família.

Em nossa cultura, sentir raiva, por exemplo, pode ser encarado de modo negativo, gerando a repressão de um sentimento que, se adequadamente expresso e elaborado, pode conduzir ao crescimento das relações. Muitos homens mostram-se pouco preparados para lidar com todo tipo de sentimento, mantendo-se afetivamente afastados do meio familiar. A repressão de sentimentos pode conduzir a problemas emocionais individuais e inviabilizar a comunicação na família.

Famílias modernas têm, com alguma frequência, problemas para regular o compartilhamento de intimidades. Um ambiente acolhedor em relação aos sentimentos e desejos que surgem no sistema familiar é fundamental, mas a intimidade do casal deve ser garantida, assim como a dos filhos, conforme cresçam e tenham condições de se responsabilizar por seus passos.

Especialização em Saúde da Família
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