Os impasses ou dificuldades do SUS

Apesar dos seus inegáveis avanços, como atestam os números citados anteriormente, a construção do SUS encontra vários entraves, entre os quais destacamos, para os propósitos do presente texto, apenas dois, até porque eles com certeza impactam diretamente no seu trabalho como membro de uma equipe de Saúde da Família: a) o subfinanciamento; b) as insuficiências da gestão local do SUS.

a) O subfinanciamento, isto é, os recursos destinados à operacionalização e ao financiamento do SUS, fica muito aquém de suas necessidades.

A questão do financiamento do Sistema Único de Saúde é histórica. A Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) em seu artigo 198 estabelecia que o SUS seria financiado com os recursos do Orçamento da Seguridade Social, além de outras fontes. Porém, em decorrência de diversos motivos, entre eles o crescimento dos gastos com aposentadorias e pensões, obrigou a previdência a utilizar parcelas crescentes do Orçamento da Seguridade Social. Em 1993 a receita de contribuições de empregados e empregadores, uma fonte tradicional de financiamento da assistência médica (representando um terço do orçamento do Ministério da Saúde), passou a financiar exclusivamente o pagamento de benefícios previdenciários, impondo ao Ministério da Saúde o endividamento para pagar as despesas de custeio. (BRASIL, 2007)

Diante deste cenário, alguma medida havia de ser tomada para financiar a saúde, desta forma, em 1994, contando com o prestígio do então Ministro da Saúde Adib Jatene foi aprovada a CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira). Mas, de acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) (BRASIL, 2007) a CPMF funcionou como uma fonte substitutiva, ou seja, "a incorporação de seus recursos correspondeu, quase na mesma proporção, a diminuição de outras fontes" (BRASIL, 2007 p.28).

Durante a década de 90 não havia nenhum parâmetro legal que obrigasse os Estados, Distrito Federal e municípios a destinarem recursos próprios para a área de saúde (CAMPELLI e CALVO, 2007). A economia, bem como as políticas públicas de financiamento do SUS no âmbito da União eram instáveis, utilizando-se de medidas emergenciais e provisórias para fazer frente à falta de recursos para o setor (GIOVANELLA et al., 2012)

A Emenda Constitucional 29 (EC-29) (BRASIL, 2000) foi criada com o objetivo de superar os problemas de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentados nos anos 90 (CAMPELLI e CALVO, 2007). A EC-29 determinou a vinculação e estabeleceu a base de cálculo e os percentuais mínimos de recursos orçamentários que a União, os Estados, Distrito Federal e municípios seriam obrigados a aplicar em ações e serviços públicos de saúde (CAMPELLI e CALVO, 2007).

"A aprovação da Emenda Constitucional nº 29, em 2000, representou uma importante conquista da sociedade para a construção do SUS, pois estabeleceu a vinculação de recursos nas três esferas de governo para um processo de financiamento mais estável do SUS." (BRASIL, sd).

Porém, em decorrência do conceito ampliado de saúde, baseado nos determinantes sociais do processo saúde doença, tornou-se imperativo a regulamentação da Emenda Constitucional 29 indicando com clareza e detalhamento o conceito de ações e serviços públicos de saúde para efeito do cumprimento da Emenda Constitucional 29 (BRASIL, 2007).

A Lei Complementar 141 (BRASIL, 2012a) vem preencher esta lacuna indo mais adiante, pois define não só o que são considerados gastos com ações e serviços públicos de saúde, mas também o que não pode ser considerados sob esta rubrica.

De acordo com a Lei Complementar 141/2012, a União aplicará, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos e os municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos.

A Lei Complementar 141 (BRASIL, 2012a) tem um papel fundamental para orientar os respectivos Tribunais de Contas no processo de fiscalização do cumprimento da Emenda Constitucional 29.

O Ministério da Saúde produziu um filme que ajuda a entender melhor a Lei Complementar 141 e que pode ser acessado em:

 

Para Nelson Rodrigues dos Santos:

  • a atualização do financiamento federal segundo a variação nominal do PIB não vem sequer acompanhado o crescimento populacional, a inflação na saúde e a incorporação de tecnologias. Mantém o financiamento público anual per capita abaixo do investido no Uruguai, Argentina, Chile e Costa Rica e por volta de 15 vezes menor que a media do praticado no Canadá, países europeus, Austrália e outros. Também é fundamental ter presente que a indicação de 30% do Orçamento da Seguridade Social para a Saúde, como era previsto nas Disposições Constitucionais Transitórias (DCT) da Constituição, era o mínimo para iniciar a implementação do SUS com Universalidade, Igualdade e Integralidade. Se tivesse sido implementada tal medida, hoje haveria R$ 106,6 bilhões para o financiamento do sistema, e não aos R$ 48,5 bilhões aprovados para o orçamento federal de 2008. O financiamento do SUS é marcadamente insuficiente, a ponto de impedir não somente a implementação progressiva/incremental do sistema, como e principalmente de avançar na reestruturação do modelo e procedimentos de gestão em função do cumprimento dos princípios Constitucionais (SANTOS, 2007).

Paim et al (2011) apontam que em 2008, dos gastos totais com saúde, 56% eram custeados com recursos públicos, 21% pelos planos/seguros de saúde e 19% pagos com recursos do próprio bolso.

Para quem trabalha na Estratégia Saúde da Família, tal insuficiência é sentida, principalmente, quando há necessidade de se acessar os outros níveis de maior complexidade do sistema, cuja oferta parece sempre aquém das demandas.

Por outro lado, o autor destaca que:

  • houve também a opção dos governos pela participação do orçamento federal no financiamento indireto das empresas privadas de planos e seguros de saúde por meio da dedução do IR, do cofinanciamento de planos privados dos servidores públicos incluindo as estatais, do não ressarcimento ao SUS pelas empresas do atendimento aos seus afiliados, pelas isenções tributárias e outros, que totalizada mais de 20% do faturamento do conjunto dessas empresas (SANTOS, 2007).

b) As insuficiências da gestão local do SUS. A gestão municipal dos recursos do SUS vem funcionando apenas em parte – sem desconsiderar que os recursos para o SUS são insuficientes. A gestão municipal é idealizada pelo projeto da Reforma Sanitária Brasileira como mais eficaz, porque "estaria mais próxima dos cidadãos" e mais sensível aos seus anseios. O SUS denomina como "gestão local" o conjunto de atividades desenvolvidas pelos gestores municipais, visando à operacionalização, na prática e em seus contextos sociopolítico-institucionais singulares, das grandes diretrizes políticas do Sistema Único de Saúde.

Pesquisadores do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo realizaram recente pesquisa em 20 pequenos municípios de duas regiões de saúde próximas a São Paulo. Por serem municípios pequenos, estes funcionaram como um verdadeiro "laboratório" de observação das reais condições de operacionalização em muitos municípios brasileiros, já que pouco mais de 80% dos municípios do país têm menos de 20 mil habitantes. Vejamos alguns dados sobre a operacionalização real do SUS mostrados pelo estudo (CECÍLIO et al., 2007):

  • A baixa resolutividade da rede básica de serviços montada no país desde a década de 1980, mas acelerada nos anos 1990, fruto de uma gestão do cuidado desqualificada, em particular pela realização de uma clínica degradada, pela baixa capacidade de construção de vínculo e produção de autonomia dos usuários. Tem havido grande dificuldade de produção de alternativas de cuidado ao modelo biomédico e sua poderosa articulação com o complexo médico-industrial e acelerado processo de incorporação tecnológica. Isso tem resultado em encaminhamentos desnecessários e excessivos e alimenta as filas de espera em todos os serviços de média e alta complexidade, além de resultar: na fragmentação dos cuidados prestados; na repetição desnecessária de meios complementares de diagnóstico e terapêutica; numa perigosa poliprescrição medicamentosa; na confusão e no isolamento dos doentes; e inclusive na perda de motivação para o trabalho por parte dos clínicos da rede básica.

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modelo biomédico (biomedicina) é construído a partir da forte ênfase e valorização da materialidade anatomofisiológica do corpo humano e a possibilidade de se produzir conhecimentos objetivos sobre seu funcionamento normal e suas disfunções, o que permitiria "intervenções" para a volta à "normalidade". Esse seria o papel principal da medicina. Metaforicamente, podemos dizer que o corpo é pensado como uma "máquina". É inegável que a medicina tecnológica, mesmo operando com tal modelo "reducionista", tem contribuído para uma formidável melhoria nos indicadores de saúde, inclusive para o aumento da perspectiva de vida. No entanto, hoje temos a compreensão de que é necessário operar com uma combinação mais complexa de saberes, enriquecida por outras contribuições além da biomedicina (psicanálise, psicologia, ciências humanas, saberes populares etc.), se quisermos ampliar no sentido de produzir um cuidado mais integral.

 

  • Os modelos assistenciais e consequentes modos de organização de processos de trabalho adotados na rede básica de saúde têm resultado, quase sempre, em pouca flexibilidade de atendimento das necessidades das pessoas e em dificuldade de acesso aos serviços em seus momentos de maior necessidade, fazendo aumentar a demanda desordenada pelos serviços de urgência/emergência.

  • Deficiência na formação dos profissionais de saúde, ainda muito centrada em práticas curativas e hospitalares, com consequente dificuldade de desenvolvimento de práticas mais integrais e resolutivas de cuidado, incluindo a capacidade de trabalhar em equipe, implementar atividades de promoção e prevenção em saúde e ter uma postura mais ética e cuidadora dos usuários do SUS.

  • Deficiência na gestão dos sistemas locorregionais de saúde que se traduz em: a) baixa capacidade de fazer uma adequada regulação do acesso aos serviços de saúde voltada para seu uso mais racional e produtivo; b) baixíssima ou quase nula capacidade de gestão do trabalho médico, em particular avaliação e acompanhamento da produtividade, qualidade do trabalho e resolutividade desses profissionais; c) baixa capacidade de planejamento/programação de serviços a partir de indicadores epidemiológicos e estabelecimento de prioridades para alocação de recursos; d) pouca ou nenhuma prática de priorização de "gestão de casos" em situação de alta vulnerabilidade dos pacientes com o objetivo de garantir o uso dos múltiplos recursos necessários para o cuidado de forma mais racional e integrada.

  • O forte protagonismo dos usuários, que ainda fazem uma clara valorização do consumo de serviços médico-hospitalares; a garantia de acesso ao atendimento mais rápido em serviços de urgência/emergência; e a busca por segurança e satisfação na utilização de tecnologias consideradas mais potentes, em particular a utilização de fármacos; a realização de exames sofisticados; e o acesso a especialistas. Tais percepções seriam componente importante da explicação da demanda sem fim por atendimento médico que desqualifica todos os parâmetros de programação e planejamento dos serviços de saúde.

Todas essas explicações talvez pudessem ser dispostas na forma de uma complexa rede causal que, mesmo tendo seus "nós críticos", acabam todas, de uma forma ou de outra, contribuindo para a formação de filas, demora no acesso e longas esperas. Em última instância, reforçando a reconhecida insuficiência de recursos necessários para o atendimento às necessidades das pessoas.


Santos, falando das dificuldades do SUS (SANTOS, 2007), aponta para problemas parecidos. Observe:

  1. a atenção básica expande-se às maiorias pobres da população, mas na média nacional estabiliza-se na baixa qualidade e resolutividade, não consegue constituir-se na porta de entrada preferencial do sistema, nem reunir potência transformadora na estruturação do novo modelo de atenção preconizado pelos princípios constitucionais;

  2. os serviços assistenciais de média e alta complexidade cada vez mais congestionados reprimem as ofertas e demandas (repressão em regra iatrogênica e frequentemente letal);

  3. os gestores municipais complementam valores defasados da tabela do SUS na tentativa de aliviar a repressão da demanda, nos serviços assistenciais de média e alta complexidade;

  4. com o enorme crescimento das empresas de planos privados, e consequente agressividade de captação de clientela, as camadas médias da sociedade, incluindo os servidores públicos, justificam e reforçam sua opção pelos planos privados de saúde;

  5. as diretrizes da integralidade e equidade pouco ou nada avançam;

  6. a judicialização do acesso a procedimentos assistenciais de médio e alto custo às camadas média-média e média-alta da população aprofunda a iniquidade e a fragmentação do sistema;

  7. o modelo público de atenção à saúde vai se estabilizando em pobre e focalizado aos 80% pobres da população, e em complementar e menos pobre aos 20% compradores de planos privados.

 

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Entende-se como judicialização do acesso a utilização de ações judiciais, amparadas no princípio constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado, para garantir o acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo. Apesar de ser, em princípio, a realização de um preceito constitucional, vários gestores e autores apontam para distorções provenientes da articulação entre os interesses das indústrias de medicamentos e equipamentos e alguns médicos que fariam a "justificativa" de suas indicações sem critérios técnicos bem definidos. Outro problema apontado é que os estratos mais pobres da população, com menos acesso a um advogado, acabam sendo preteridos em relação àqueles com melhores condições econômicas, resultando na iniquidade apontada pelo autor.

 

Apesar das dificuldades enfrentadas neste percurso é preciso considerar que houve um aumento no acesso aos serviços de saúde após a criação do SUS. A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) realizada em 1981, antes da implantação do SUS, observou que 8% da população (9,2 milhões de pessoas) relataram ter utilizado o serviço de saúde nos últimos 30 dias. Em 2008, 14,2%, ou seja, 26,8 milhões de pessoas, afirmaram ter usado o serviço nos últimos 30 dias. Tais dados apontam um aumento da ordem de 174% no uso dos serviços de saúde durante este período (PAIM et al., 2011)

Santos ressalta que:

  • ao lado dos inestimáveis avanços da inclusão, com a expansão dos serviços públicos, atendendo necessidades e direitos da população, permanece inda um inaceitável porcentual de ações e serviços evitáveis ou desnecessários, bem como de tempos de espera para procedimentos mais sofisticados, geradores de profundos sofrimentos com agravamento de doenças e mortes evitáveis. Só de hipertensos temos 13 milhões e de diabéticos, 4,5 milhões na espera de agravamento com insuficiência renal, doenças vasculares e outras, mais de 90 mil portadores de câncer sem acesso oportuno à radioterapia, 25% dos portadores de tuberculose, hansenianos e de malária sem acesso oportuno e sistemático ao sistema, incidências anuais de 20 mil casos novos de câncer ginecológico e 33 mil casos novos de AIDS, entre dezenas de exemplos de repressão de demandas (SANTOS, 2007).

Santos ainda aponta que:

  • Os gestores municipais e estaduais do SUS, os trabalhadores de saúde e os prestadores de serviços encontram-se no sufoco e angústia de atender os sofrimentos e urgências de "hoje e ontem", obrigados a reprimir demandas, sabendo penosamente que ações preventivas e de diagnósticos precoces impediriam o surgimento da maior parte de casos graves e urgentes, mas obrigados a priorizar os casos de maiores sofrimentos e urgências devido à insuficiência de recursos. A reprodução do complexo médico-industrial, os casos de corporativismos anti-sociais e até de prevaricações e corrupções encontram terreno fértil nesse sufoco. Este contexto extremamente adverso e desgastante não justifica, contudo, passividades e conivências com irresponsabilidades sanitárias perante os princípios e diretrizes constitucionais, na gestão descentralizada do SUS nem ao nível central. O modo de financiar e institucionalizar a política pública com base no direito à igualdade e à vida é ainda marginal, e muito cuidado e dedicação devem ser tomados para que as imprescindíveis inovações de gestão permaneçam vinculadas à visão e compromisso de futuro e de sociedade pautados por esse direito.