Marcelo Marcos Piva Demarzo
Revisão de Celso Zilbovicius e Daniel Almeida Gonçalves
Atenção Primária à Saúde
Antecedentes históricos
A história da (re)organização de serviços e sistemas de saúde orientados pelos princípios da Atenção Primária à Saúde (APS) é marcada por uma trajetória de sucessivas reconstruções até se consolidar como uma política de reforma, uma alternativa diante da permanente crise (financeira e de resultados) dos sistemas de saúde contemporâneos. Do ponto de vista administrativo, o delineamento teórico de um sistema de saúde hierarquizado e integrado em rede – baseado na assistência primária, secundária e em hospitais terciários –, surge em 1920, na Inglaterra, com as propostas do Relatório Dawson (apud WESTPHAL, 2006).
Porém, foi o clássico estudo de White et al. (1961) que alertou definitivamente para a atenção médica primária, ao demonstrar que a imensa maioria do cuidado médico nos EUA e Reino Unido era realizada neste nível de atenção, muitas vezes em centros de saúde comunitários, evidenciando que o atendimento em hospitais universitários representava apenas uma discreta fração do total.
Vale ressaltar que o modelo de atenção baseado em centros de saúde comunitários remontava a iniciativas pioneiras francesas do final do século XIX, e americanas do início do século XX (GIL, 2006), nas quais já se promoviam e efetivavam conceitos-chave, muitos incorporados pela APS no futuro: população de risco; ações de base territorial; descentralização; assistência social; prevenção associada à assistência médica; educação sanitária; ações sobre o meio ambiente; co-gestão e controle por colegiados e conselhos; assistentes de quarteirão, e rede de atenção à saúde organizada em distritos.
Entretanto, a discussão conceitual nesse campo, como percebemos hoje, está intimamente relacionada à história da Conferência Internacional de Alma-Ata (WESTPHAL, 2006; ALMEIDA, 2005), como veremos a seguir.
Considera-se que o termo APS (Primary Health Care) tenha sido descrito pela primeira vez em documentos oficiais ainda no início da década de 1970, nas páginas da Contact, revista da Comissão Médica Cristã (CMC), ligada ao Conselho Mundial de Igrejas e Federação Mundial Luterana (MELLO, 2009). A CMC, com larga experiência em países em desenvolvimento, assumia a defesa da intervenção no nível local das comunidades, com o treinamento de agentes de saúde e métodos acessíveis, ao perceber que as ações missionárias, em sua maioria baseada em hospitais, apresentavam baixo impacto na saúde da população. Essa instituição foi responsável pela apresentação de várias experiências em saúde básica para a OMS, e, em 1974, foi chamada para estabelecer uma colaboração formal nas discussões sobre APS (MELLO, 2009).
Em 1975, o relatório A Promoção de Serviços Nacionais de Saúde (The Promotion of National Health Services), incorporou, pela primeira vez, a expressão APS aos documentos da OMS, defendendo a atenção primária como caminho para serviços de saúde mais efetivos (MELLO, 2009). Entretanto, ainda faltava uma base conceitual mais clara sobre o modelo, o que incentivou uma proposta de conferência internacional sobre o tema, capitaneada pela OMS (MELLO, 2009).
Tempo e esforços consideráveis foram então investidos na tarefa de dar conteúdo à expressão APS. Discussões em torno do papel do Estado e da forma de financiamento, a referência à pobreza e grupos vulneráveis, assim como a necessidade de se estabelecer uma definição geral que coubesse em realidades muito distintas, tornaram-se desafios. Isso fez com que a conceituação da APS tomasse um aspecto mais genérico, esperando que cada país construísse o seu conceito e suas práticas em processo (MELLO, 2009).
Assim, durante a Conferência que culminou com a Declaração de Alma-Ata, organizada pela OMS em 1978, na antiga União Soviética, a saúde foi reconhecida como direito fundamental das pessoas e comunidades, sendo enfatizado o acesso universal aos serviços de saúde e a intersetorialidade das ações, e ficando evidenciada a APS como estratégia básica para a consecução desses objetivos (MELLO, 2009). O lema Saúde para Todos no ano 2000 foi o mote das discussões, o qual seria alcançado pelo desenvolvimento da APS e seus princípios em todos os países do mundo. A figura a seguir traz uma imagem panorâmica da Conferência de Alma-Ata, em1978.
Figura 1: Conferência de Alma-Ata, na antiga União Soviética, Organização Mundial da Saúde, 1978. (créditos: PAHO/WHO)
A APS foi definida então como “atenção essencial à saúde baseada em tecnologia e métodos práticos, cientificamente comprovados e socialmente aceitos, tornados universalmente acessíveis a indivíduos e famílias na comunidade, a um custo que tanto a comunidade quanto o país possa arcar em cada estágio de seu desenvolvimento. É parte integral do sistema de saúde do país, do qual é função central, sendo o enfoque principal do desenvolvimento social e econômico global da comunidade. É o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema nacional de saúde, levando a atenção à saúde o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham, constituindo o primeiro elemento de um processo de atenção continuada à saúde” (apud STARFIELD, 1998).
Definiram-se, também, os elementos essenciais da APS para aquele momento histórico, como apontado anteriormente, sendo muitos deles similares aos dos centros de saúde comunitários: educação em saúde conforme as necessidades locais; promoção de nutrição adequada; abastecimento de água e saneamento básico apropriados; atenção materno-infantil (incluindo o planejamento familliar); imunização; prevenção e controle das doenças endêmicas; tratamento apropriado das doenças comuns e acidentes na comunidade, e distribuição de medicamentos básicos e essenciais. Esses elementos nortearam a evolução do conceito de APS e de seus princípios até os dias de hoje (STARFIELD, 1998).
Princípios modernos da APS
Podemos circunscrever, apoiados no trabalho de Barbara Starfield, uma das mais importantes autoras da área, os princípios gerais da APS, com base na Declaração de Alma-Ata de 1978 e na evolução do conceito até os dias de hoje: oferta de ações de atenção à saúde integradas e acessíveis segundo as necessidades locais, desenvolvidas por equipes multiprofissionais responsáveis por abordar uma ampla maioria das necessidades individuais e coletivas em saúde, desenvolvendo uma parceria sustentada com as pessoas e comunidades (STARFIELD, 1998).
A mesma autora resume os princípios da APS em quatro características ou atributos essenciais (primeiro contato, integralidade, longitudinalidade e coordenação), mais três derivados (orientação familiar, comunitária, e competência cultural), explicitados na figura a seguir.
Assim, a APS deve ser o primeiro contato das pessoas com o sistema de saúde, sem restrição de acesso às mesmas, independente de gênero, condições socioculturais e problemas de saúde; com abrangência e integralidade das ações individuais e coletivas; além de continuidade (longitudinalidade) e coordenação do cuidado ao longo do tempo, tanto no plano individual quanto no coletivo, mesmo quando houver necessidade de referenciamento das pessoas para outros níveis e equipamentos de atenção do sistema de saúde. Deve ser praticada e orientada para o contexto familiar e comunitário, entendidos em sua estrutura e conjuntura socioeconômica e cultural (STARFIELD, 1998, 2005).
Quadro 6: Atributos essenciais e derivados da APS (STARFIELD, 1998; 2005).
Sabe-se hoje, por diversos estudos científicos, que um sistema de saúde com forte referencial na APS é mais efetivo, mais satisfatório para as pessoas e comunidades, tem menores custos, e é mais equitativo – mesmo em contextos de grande iniquidade social (STARFIELD, 2005).
Assim, a APS vem sendo entendida como o primeiro nível de atenção nos sistemas de saúde nacionais, regionais e locais, como também como estratégia política e princípios para a (re)organização dos serviços e sistemas de saúde. Para tal, necessita de práticas profissionais específicas e construídas em um modo complexo, integral e sistêmico de pensar o PSa, incorporando o conceito mais moderno de promoção da saúde apresentado anteriormente.
No Brasil, adota-se muitas vezes o nome de Atenção Básica para tratar dos mesmos princípios e características, cuja expressão atual na política de saúde é a Estratégia Saúde da Família.