Marcelo Marcos Piva Demarzo
Revisão de Celso Zilbovicius e Daniel Almeida Gonçalves
Promoção da saúde
Promoção da saúde e níveis de prevenção
A promoção da saúde foi nominada, pela primeira vez, pelo sanitarista Henry Sigerist, no início do século XX. Ele elaborou as quatro funções da Medicina: promoção da saúde, prevenção das doenças, tratamentos dos doentes e reabilitação. Segundo a sua concepção, a promoção da saúde envolveria ações de educação em saúde e ações estruturais do Estado para melhorar as condições de vida da população (DEMARZO, 2008).
Leavell & Clark, em 1965, propuseram o modelo da história natural da doença, composto por três níveis de prevenção (apud DEMARZO, 2008), descritos no Quadro 1: prevenção primária, secundária e terciária. Nesse modelo, a promoção da saúde se limitava e compunha um nível de atenção da Medicina Preventiva (prevenção primária), constituindo ações destinadas ao desenvolvimento da saúde e bem-estar gerais no período de pré-patogênese.
Quadro 1: A promoção da saúde e os níveis de prevenção segundo Leavell & Clark (1965).
A promoção da saúde aparece como prevenção primária, confundindo-se com a prevenção referente à proteção específica (vacinação, por exemplo). Corresponde a medidas gerais, educativas, que objetivam melhorar a resistência e o bem-estar geral dos indivíduos (comportamentos alimentares, exercício físico e repouso, contenção de estresse, não ingestão de drogas ou de tabaco), para que resistam às agressões dos agentes. Também diz respeito a ações de orientação para cuidados com o ambiente, para que esse não favoreça o desenvolvimento de agentes etiológicos (comportamentos higiênicos relacionados à habitação e aos entornos).
Engloba estratégias populacionais para detecção precoce de doenças, como por exemplo, o rastreamento de câncer de colo uterino. Também contempla ações com indivíduos doentes ou acidentados com diagnósticos confirmados, para que se curem ou mantenham-se funcionalmente sadios, evitando complicações e mortes prematuras. Isto se dá por meio de práticas clínicas preventivas e de educação em saúde, objetivando a adoção/mudança de comportamentos (alimentares, atividades físicas, etc.)
Consiste no cuidado de sujeitos com sequelas de doenças ou acidentes, visando a recuperação ou a manutenção em equilíbrio funcional.
Esse modelo contribuiu para destacar as ações sobre o ambiente e sobre os estilos de vida, além de ações clínicas, o que foi fundamental dentro do processo de transição epidemiológica vivenciado no último século, com as doenças crônico-degenerativas ocupando um lugar de destaque. Dessa maneira, a promoção da saúde, além de se associar a medidas preventivas, passou a englobar a promoção de ambientes e estilos de vida saudáveis (WESTPHAL, 2006).
O movimento moderno da promoção da saúde
Marc Lalonde, Ministro da Saúde do Canadá na década de 1970, ao investigar o impacto dos investimentos e gastos em saúde na melhoria dos indicadores, constatou que 80% das causas das doenças estavam relacionadas a estilos de vida e ambiente. Esse foi um disparador para o questionamento sobre a capacidade das ações sanitárias setoriais serem capazes de resolver os problemas de saúde. Isto levou Lalonde a atribuir ao governo a responsabilidade por outras medidas, como o controle de fatores que influenciam o meio ambiente (poluição do ar, eliminação de dejetos humanos, água de abastecimento público) (WESTPHAL, 2006).
Assim, um processo de (re)valorização e (re)conceituação da promoção da saúde começou a surgir, a partir da demanda pelo controle dos custos crescentes referentes à assistência médica – os quais não correspondiam a resultados igualmente significativos, bem como da necessidade de enfrentamento do quadro crescente de doenças crônico-degenerativas numa realidade de envelhecimento populacional (WESTPHAL, 2006).
Nesse contexto, um conceito mais contemporâneo de promoção da saúde surgiu em 1986, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) promoveu a Primeira Conferência Internacional sobre promoção da saúde, em Ottawa, Canadá. Esse encontro consistiu em uma resposta à crescente demanda por uma nova concepção de Saúde Pública no mundo, que pudesse responder à complexidade emergente dos problemas de saúde, cujo entendimento não era mais possível por meio do enfoque preventivista tradicional – vinculação de uma determinada doença a um determinado agente ou a um grupo de agentes – mas que se relacionasse a questões como as condições e modos de vida. Como produto da Conferência, foi emitida a Carta de Ottawa para a promoção da saúde (WESTPHAL, 2006).
A Carta de Ottawa reforça o conceito ampliado de saúde e seus determinantes para além do setor saúde, englobando conjuntamente as condições biológicas, sociais, econômicas, culturais, educacionais, políticas e ambientais. Ficaram definidos como condições e recursos fundamentais para a saúde: paz, habitação, educação, alimentação, renda, ecossistema estável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade (WESTPHAL, 2006).
Nessa concepção, mais moderna, a promoção da saúde se define como o processo de fortalecimento e capacitação de indivíduos e coletividades (municípios, associações, escolas, entidades do comércio e da indústria, organizações de trabalhadores, meios de comunicação), no sentido de que ampliem suas possibilidades de controlar os determinantes do PSa e, com isso, ensejem uma mudança positiva nos níveis de saúde. Implica na identificação dos obstáculos à adoção das políticas públicas de saúde e em um modo de removê-los, além de considerar a intersetorialidade das ações, a implementação de ações coletivas e comunitárias, além da reorientação dos serviços de saúde (DEMARZO, 2008).
Assim, a nova promoção da saúde consiste em proporcionar às pessoas e comunidades os meios necessários para melhorar sua saúde e exercer um maior controle sobre a mesma. A Carta de Ottawa propôs também cinco campos de ação principais para a promoção da saúde (DEMARZO, 2008), descritos a seguir, no Quadro 2.
Quadro 2- Cinco campos de ação para a promoção da saúde (Carta de Ottawa, 1986).
Minimização das desigualdades por meio de ações sobre os determinantes dos problemas de saúde (equidade). As políticas públicas saudáveis podem ser estabelecidas por qualquer setor da sociedade (intersetorialidade) e devem demonstrar potencial para produzir saúde socialmente. Como exemplos de políticas saudáveis citamos o Estatuto da Criança e do Adolescente e a política nacional de promoção da saúde do Ministério da Saúde.
Uma vez que a saúde seja reconhecida como socialmente produzida nos diferentes espaços de convivência, é fundamental que as escolas, os municípios, os locais de trabalho e de habitação sejam ambientes saudáveis.
Engloba a participação social (Estado e sociedade civil) na elaboração e controle das ações de promoção da saúde e visa o empoderamento da comunidade. Preza pelo fortalecimento das organizações comunitárias, pela redistribuição de recursos, pelo acesso a informações e pela capacitação dos setores marginalizados do processo de tomada de decisões.
Viabilizado por meio de estratégias educativas, são programas de formação e atualização que capacitam os indivíduos a participar, criar ambientes de apoio à promoção da saúde e desenvolver habilidades pessoais relacionadas à adoção de estilos de vida saudáveis.
Esforços para a ampliação do acesso, para a efetivação da equidade e para a adoção de ações preventivas por meio da moderna abordagem da promoção da saúde.
Desde a Carta de Ottawa, a OMS vem organizando novas conferências sobre Promoção da Saúde no sentido de reforçar, aprimorar e profundar os conceitos e ações definidos em 1986. São elas:
1. Segunda Conferência Internacional sobre promoção da saúde, realizada em Adelaide em 1988;
2. Terceira Conferência Internacional sobre promoção da saúde, realizada em Sundsval em 1991;
3. Quarta Conferência Internacional sobre promoção da saúde, realizada em Jacarta em 1997;
4. Quinta Conferência Internacional sobre promoção da saúde, realizada no México em 2000;
5. Sexta Conferência Global de promoção da saúde, realizada em Bancoc em 2005. (DEMARZO, 2008).
Se analisarmos o histórico do conceito de promoção da saúde e, principalmente, as cartas e declarações resultantes das conferências internacionais sobre o tema, notaremos a tendência à adoção de uma visão holística da saúde e ao entendimento da determinação social do processo saúde-doença e à compreensão da equidade social como objetivos a serem atingidos. Assim, a intersetorialidade, a participação social para o fortalecimento da ação comunitária e a sustentabilidade são considerados como princípios ao se definirem estratégias de ação (DEMARZO, 2008). O Quadro 3 traz os princípios da promoção da saúde atuais (WESTPHAL, 2006).
Quadro 3: Princípios modernos da promoção da saúde (WESTPHAL,2006).
As ações devem ser dirigidas às causas primárias dos problemas e não somente as suas manifestações concretas. Por exemplo: fomento à saúde física, mental, social e espiritual, enfatizando a determinação social, econômica e ambiental, uma vez que os níveis de saúde da população estão diretamente relacionados à qualidade e à quantidade de recursos (econômicos, sociais etc.) disponibilizados a cada membro da sociedade, para a sua subsistência.
Garantir acesso universal à saúde, com justiça social. Para a construção de espaços de vida mais equitativos, são necessárias: a) a análise dos territórios onde as pessoas habitam; b) a detecção de grupos em situação de exclusão; c) a implementação de políticas públicas que façam uma discriminação positiva desses grupos. Isso implica na criação de oportunidades para que todos tenham saúde, reconhecendo que as necessidades são diferenciadas, uma vez que sofrem interferência dos determinantes de saúde na população (renda, habitação, educação etc.).
Articula saberes e experiências no planejamento, execução e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações complexas. O desafio colocado para a concretização da intersetorialidade é o modelo tradicional de fragmentação e desarticulação das ações. É necessária uma mudança radical das práticas e da cultura organizacional das administrações, pressupondo a superação da fragmentação na gestão das políticas públicas.
Diz respeito ao envolvimento dos cidadãos no planejamento, execução e avaliação dos projetos. Para que essa participação seja qualificada, torna-se necessário o empoderamento coletivo, para que a população se torne capaz de exercer controle sobre os determinantes da saúde.
A promoção da saúde trabalha com questões de natureza complexa, demanda processos de transformação coletivos, com impactos a médio e longo prazos. Almeja-se a criação de iniciativas de acordo com os princípios do desenvolvimento sustentável e a garantia de processo duradouro e forte.
Promoção da Saúde vs. Prevenção de Doenças
Nesse momento, é importante salientarmos a diferença entre prevenção de doenças e promoção da saúde, lembrando que ambas são importantes para a condição de saúde. Enquanto a primeira trabalha no sentido de garantir proteção a doenças específicas, reduzindo sua incidência e prevalência nas populações, a promoção da saúde moderna visa incrementar a saúde e o bem-estar gerais, promovendo mudanças nas condições de vida e de trabalho capazes de beneficiar a saúde de camadas mais amplas da população, ou seja, facilitar o acesso às escolhas mais saudáveis. A promoção da saúde deve possuir enfoque mais amplo e abrangente, pois deve trabalhar a partir da identificação e enfrentamento dos macrodeterminantes do PSa, procurando transformá-los favoravelmente na direção da saúde.
Para a prevenção, evitar a doença é o objetivo final. Para a promoção, o objetivo contínuo é um nível ótimo de vida e de saúde, portanto a ausência de doenças não é suficiente (DEMARZO, 2008). O Quadro 4 resume as principais diferenças entre promoção da saúde e prevenção de doenças.
Quadro 4: Diferenças principais entre promoção da saúde e prevenção de doenças.
Categoria | Promoção da saúde | Prevenção de doenças |
Conceito de Saúde | Positivo, multidimensional | Ausência de doença |
Modelo de Intervenção | Participativo, intersetorial | Profissional de saúde |
Alvo | População e Ambiente | Grupos de alto risco |
Conceito de Prevenção Quaternária
As ações em saúde, tanto preventivas quanto curativas, têm sido consideradas, em algumas situações, excessivas e agressivas, tornando-se também um fator de risco para a enfermidade e a doença. Por essa razão, em 1995, Jamoulle e Roland propuseram o conceito de Prevenção Quaternária (Prevenção da Iatrogenia) (ALMEIDA, 2005), aceito pelo Comitê Internacional da Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA) em 1999. Esse novo nível de prevenção pressupõe ações clínicas centradas na pessoa, e pautadas na epidemiologia clínica e na saúde baseada em evidências, visando melhorar a qualidade da prática em saúde, bem como a racionalidade econômica. Portanto, as ações devem ser cultural e cientificamente aceitáveis, necessárias e justificadas, prezando pelo máximo de qualidade da atenção com o mínimo de quantidade/intervenção possível.
Outro objetivo da prevenção quaternária é construir a autonomia dos usuários e pacientes por meio de informações necessárias e suficientes para poderem tomar suas próprias decisões, sem falsas expectativas, conhecendo as vantagens e os inconvenientes dos métodos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos propostos. Em suma, consiste na construção da autonomia dos sujeitos e na detecção de indivíduos em risco de sobretratamento ou excesso de prevenção, para protegê-los de intervenções profissionais inapropriadas e sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis (ALMEIDA, 2005).
Promoção da saúde no Brasil
No Brasil, em 2006, o Ministério da Saúde propôs a Política Nacional de promoção da saúde (ALMEIDA, 2005), com o objetivo de promover a qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes (modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura e acesso a bens e serviços essenciais). O documento traz a promoção da saúde como uma das estratégias de produção de saúde, ou seja, como um modo de pensar e de operar articulado às demais políticas e tecnologias desenvolvidas no sistema de saúde brasileiro, contribuindo para a construção de ações que possibilitam responder às necessidades sociais em saúde (DEMARZO, 2008). O Quadro 5 elenca ações específicas propostas por essa política (ALMEIDA, 2005).
Quadro 5: Ações propostas pela Política Nacional da promoção da saúde (ALMEIDA, 2005).
Concluindo essa tema, podemos dizer que os princípios da promoção da saúde, definidos pela OMS na Carta de Ottawa, de 1986, têm servido de guia para as ações de promoção da saúde mundo afora, sendo considerados por muitos como a nova saúde pública, na qual as práticas de saúde são cada vez mais desenvolvidas em outras agências e setores, para além dos serviços sanitários, como por exemplo, a escola, o local de trabalho, o comércio, a indústria e a mídia (DEMARZO, 2008).
A seguir veremos os princípios da Atenção Primária à Saúde, e suas correlações com os conceitos vistos até o momento, dentro da lógica de (re)organização dos sistemas de saúde.