Discussão
Observamos que Sandra traz uma série de queixas emocionais e físicas que estão prejudicando sua qualidade de vida e, em menor intensidade, suas atividades diárias.
Na Atenção Primária, dadas as facilidades de acesso e a abordagem integral, muitos casos como este são identificados, sem muitas vezes apresentar a constelação de sinais e sintomas suficientes para o diagnóstico de quadros depressivos. Esses quadros subsindrômicos podem afetar o bem-estar da pessoa e mesmo gerar sintomas físicos sem explicação clínica, sendo fortes fatores de risco para piora e então desenvolvimento do adoecimento psíquico.
O blues puerperal é um exemplo deste quadro, como estudado no caso Darlene e Darnley. Outras vezes, os sintomas depressivos somam-se aos ansiosos, havendo dúvida em qual quadro prevalece. O conjunto destas situações, subsindrômicas e mistas de depressão e ansiedade, com componentes de sintomas físicos inespecíficos, é denominado "transtornos mentais comuns" (TMC). Ainda que inadequadamente apontados como "transtornos" (que podem remeter a "doenças"), essa nomenclatura tem boa aplicabilidade na Atenção Primária, pois facilita a abordagem por tratar os sintomas de forma sindrômica, permitindo um foco maior na pessoa e nos seus problemas, destacando os riscos e vulnerabilidades, e um foco menor em questões de classificações categoriais (GOLDBERG, D. P.; HUXLEY, P., 1992). Nesse sentido, um sistema de classificação mais voltado aos problemas se adapta melhor à Atenção Primária, em especial para casos com demandas psicossociais (GASK, L. et al, 2008).
Sandra apresenta, a partir dos dados relatados, um TMC. Mais especificamente, um episódio depressivo que ocorre no puerpério. A depressão no pós-parto ocorre até um ano após o parto e suas manifestações psicopatológicas devem ser diferenciadas do diagnóstico de blues puerperal (baby blues), como já estudado neste curso. Inclui redução do desempenho habitual ou na qualidade de vida, isolamento social, ataques de ansiedade, choro fácil, perda do interesse na vida, insegurança excessiva, pensamentos obsessivos ou inapropriados, irritabilidade, fadiga, sentimentos de culpa e inutilidade, sobretudo por se sentir incapaz de cuidar do bebê, medo de machucá-lo e relutância em amamentá-lo, desligamento emocional do bebê e de outros familiares, podendo ocorrer também queixas somáticas, como dor na incisão cirúrgica, cefaleia e dor lombar, além de ideias de autoagressão e planos suicidas.
Como vimos no caso descrito, a equipe se mostra sensível ao sofrimento de Sandra, identifica os riscos e se dispõe a ajudar. Essa postura por si só já tem forte componente terapêutico. O acolhimento, a escuta atenta, o esclarecimento e o suporte são elementos constituintes da ação terapêutica e não são exclusivos de profissionais com formação específica em saúde mental. Assim, todos os profissionais que atuam na Atenção Primária têm capacidade de abordar e tratar, de uma forma ou de outra, as pessoas com transtornos mentais comuns ou outros quadros psíquicos. Claro que, dependendo da gravidade da situação, pode ser necessário apoio de profissionais especialistas em saúde mental, seja através do matriciamento ou de referência para ambulatórios psiquiátricos, CAPS, emergências e hospitais.
O suporte como ação terapêutica pode ser exemplificado para Sandra como um conjunto de intervenções que inclui terapia psicossocial associada à orientação familiar e à prática física regular. No que diz respeito à orientação familiar, neste caso é importante contato com a mãe, que provavelmente não avalia o prejuízo de suas condições psíquicas como sendo decorrente de um transtorno mental que requer intervenções especializadas, e com o marido, que também enfrenta conflitos os quais por meio do relato não podemos dimensionar. A entrevista individual com sua mãe e com seu marido seria de grande importância no intuito da avaliação do grau de continência de ambos ao sofrimento e às limitações da paciente e, principalmente, às suas percepções em relação a esse transtorno mental, incluindo os mitos com respeito à depressão.
Sobre as intervenções psicossociais que cabem à Atenção Primária, nossa paciente foi encaminhada para um grupo de solução de problemas. A terapia de solução de problemas é uma terapia cognitivo-comportamental que tem se mostrado eficaz para pacientes com transtornos mentais comuns e de fácil aplicabilidade por médicos e enfermeiros na Atenção Primária.
Além de terapia de solução de problemas, há outras intervenções, como terapia comunitária e grupos de relaxamento respiratório, por exemplo. Muitas vezes esses tratamentos são suficientes para evitar o uso de medicação psicotrópica (antidepressivos e ansiolíticos), sendo fortes instrumentos contra a medicalização desnecessária das pessoas com sofrimento psíquico. No entanto, a depender da gravidade do caso, o uso de medicamento está indicado, como foi o caso de Sandra. Pelo fato de ela não estar amamentando, não há restrição na escolha do antidepressivo, assim como a dose preconizada.
Além disso, devem ser afastadas outras condições clínicas que poderiam estar relacionadas aos sintomas depressivos. Disfunções fisiológicas relacionadas à gestação e ao puerpério podem se manifestar por alterações do sono, do apetite e fadiga. Anemia e disfunções hormonais podem produzir sintomas semelhantes a um transtorno depressivo, portanto o exame físico e exames complementares devem ser analisados para investigar possíveis associações de condições clínicas ao episódio depressivo.
Completando os pilares da ação terapêutica, além do acolhimento, da escuta atenta e do suporte, é necessário esclarecimento. Muitas vezes, as pessoas em sofrimento guardam muitas angústias e fantasias a respeito de seu quadro e das relações sociais e familiares. É importante dar espaço para a manifestação dessas preocupações e esclarecê-las. Além disso, há muito estigma no que se refere ao adoecimento psíquico. A equipe de saúde deve discutir alguns conceitos populares distorcidos em relação aos transtornos depressivos, tais como:
Cientes de todos os elementos apontados, os profissionais especialistas em Saúde da Família serão capazes de uma abordagem efetiva para casos que envolvam aspectos da saúde mental, de tal modo que efetivem uma abordagem integral e satisfatória para a pessoa que procura atendimento e para o profissional que oferece apoio.