Sandra e Sofia
Soraia Tahan
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Dor abdominal

O caso descreve uma família, em que a mãe Sandra com 43 anos acaba de ter Sofia e já tinha uma filha de sete anos. Sandra demonstra traços de depressão, uma vez que busca frequentemente a Unidade Básica de Saúde com várias queixas de sua saúde e da saúde de suas filhas, bem como da distância de seu marido. Dentro desse contexto, uma das queixas trazidas é que Amanda, sua filha de sete anos, apresenta dor abdominal há mais de um mês. O relato é que Amanda tem tido dor abdominal à noite, apresenta ainda quadro de "falta de apetite" ("Não quer comer nas refeições, pede mamadeira"), com sugestão de seleção de alimentos ("Só quer tomar Nescau"). Na consulta médica, a queixa de dor abdominal que a menina apresenta não é abordada com detalhes. Na evolução do relato do caso, não há mais menção da queixa de dor abdominal da criança; há melhora de toda a família com as ações propostas, em especial da mãe com o tratamento com antidepressivo. Dessa forma, parece que o sintoma de dor abdominal de Amanda, assim como a falta de apetite, estavam intimamente associados a sofrimento psicossocial da criança, considerando o momento difícil que a mãe e a família viviam. Entretanto, é importante levantarmos alguns aspectos sobre dor abdominal na infância e na adolescência, uma vez que é uma das queixas frequentes no atendimento pediátrico.


Uma questão importante a ser discutida é o período ou tempo de ocorrência da dor abdominal, a fim de caracterização da cronicidade ou não da dor. A dor abdominal na criança só é caracterizada como crônica quando excede dois meses de duração e, no caso de Amanda, a queixa é de mais de um mês.

Outro dado da história que deve ser ressaltado é o fato de Sandra ter dado remédio de vermes para Amanda, porém sem resolução da dor. Na prática clínica, é muito comum que a dor abdominal crônica na infância seja sempre associada à presença de parasitoses intestinais, entretanto outras possibilidades devem ser consideradas.

Como já foi dito, a abordagem de Felipe sobre a queixa de dor abdominal de Amanda foi bastante superficial. O fato de a mãe ter trazido múltiplas queixas ao mesmo tempo pode ter contribuído para essa abordagem mais leviana, ocorrendo uma "diluição" da queixa. Entretanto, é importante salientar que, nos casos de crianças com dor abdominal crônica, uma anamnese completa, ainda que dirigida, é fundamental para discriminar a origem da dor abdominal crônica, seja funcional ou orgânica, a fim de dirigir o profissional de saúde na condução do caso. Dentro dessa discriminação, é imperativo pesquisar a presença de sinais de alarme que indicam dor abdominal de origem orgânica, bem como condições de vida da criança e da família que podem indicar dor abdominal funcional.

Os sinais de alarme que sugerem dor abdominal de causa orgânica são: idade de início antes de quatro anos, déficit ou desaceleração de crescimento, sangramento gastrointestinal, vômitos e febre recorrente associada, dor longe do umbigo, dor que desperta a criança do sono, recusa alimentar em função da dor, sangramento gastrointestinal, diarreia noturna, artrite, doença perirretal, puberdade retardada e história familiar de doença péptica, doença celíaca e doença inflamatória intestinal.

No caso de Amanda, Sandra refere que a dor abdominal ocorre sempre à noite, na escola e quando volta para casa. Como Amanda tem dor abdominal à noite, seria necessário tentar caracterizar melhor em qual período da noite a dor se manifesta e se a dor desperta ou não a criança do sono, considerando ser este um dos sinais de alarme de dor de origem orgânica. No caso de Amanda, dá impressão que a dor ocorre no período da noite, quando a família toda está reunida, porém não parece ocorrer no período do sono.

Outro fato importante a ser discutido é o estado nutricional de Amanda, que embora não esteja explicitamente descrito, há referência no texto de que a menina está "gordinha e corada", sugerindo, portanto, que ela não apresenta déficit nutricional. O termo "gordinha" pode indicar que a criança aparenta estar bem nutrida ou até mesmo apresenta sobrepeso ou obesidade. Importante lembrar que a avaliação do estado nutricional da criança é um dos pilares da pediatria, sendo fundamental em toda consulta pediátrica. Ressalta-se ainda que, no tocante à queixa de dor abdominal crônica, o déficit nutricional ou a desaceleração do crescimento também indicam dor abdominal de origem orgânica. No caso de Amanda, os sinais de alerta de dor que desperta do sono e desaceleração do crescimento parecem não ocorrer. Outros sinais de alerta também não foram interrogados pelo médico e não há qualquer referência deles no texto. Dessa forma, parece que a dor abdominal da menina tem origem emocional, considerando o momento de vida difícil que a mãe e a família estão vivendo. Acostumada a ser filha única durante anos, sempre mimada pelo pai, que atualmente está muito cansado, Amanda agora tem que dividir a atenção da mãe com um bebê que chora muito, e sua mãe também está muito cansada e irritada. Mãe deprimida, com outra filha pequena, pai cansado e ausente, enfim, a pequena Amanda pode apresentar dor abdominal em resposta ao estresse familiar que está vivenciando.

A dor abdominal crônica, quando de origem emocional, entra na categoria de dor abdominal de origem funcional, em que os fatores psicossociais têm forte influência. A grande maioria dos casos de dor abdominal crônica na criança e no adolescente é de origem funcional. A dor abdominal funcional é resultante da integração de fatores biopsicossociais, ou seja, fatores individuais e familiares vão contribuir para a ocorrência da dor em indivíduos predispostos. Fatores individuais biológicos, como limiar de sensibilidade dolorosa e de motilidade, sofrem influencia de fatores emocionais, podendo ocasionar ou não sintomas como dor abdominal. A condição individual de enfrentamento ou resiliência frente às dificuldades cotidianas é um dos fatores emocionais individuais que vão interferir na somatização de sintomas. A dinâmica e o ambiente familiar também vão interferir diretamente na manifestação de sintomas. Um fato também importante é que as crianças aprendem o que vivenciam, por exemplo, há sempre um aprendizado a partir de exemplos familiares em situação de dor. Dor abdominal funcional é mais comum em crianças de famílias com rotina sem atividades prazerosas, ou famílias em momentos estressantes, bem como em famílias cujos responsáveis apresentam frequentes queixas de dor (dor abdominal, dor de cabeça) ou valorizam demasiadamente as queixas de dor. Enfim, a condição da criança de enfrentamento às dificuldades e a dinâmica familiar vão influenciar a ocorrência ou não de dor.

Outro fato importante a ser discutido é que Sandra refere que Amanda está apresentando "falta de apetite" ("Não quer comer nas refeições, pede mamadeira"), com sugestão de seleção de alimentos ("Só quer tomar Nescau"), porém não há qualquer referência de recusa alimentar em função da dor abdominal, considerando que esta última manifestação seria também sinal de alerta indicativo de dor abdominal de origem orgânica. A mudança dos hábitos alimentares de Amanda parece também associar-se a contexto emocional, uma vez que a menina "pede mamadeira", o que pode representar certa regressão e necessidade de também ser cuidada como bebê, comum em situações de nascimento de irmã(o) menor. Essas mudanças no hábito alimentar, "Não querer comer nas refeições" e "Só querer tomar Nescau", podem ter predisposto à mudança no hábito intestinal, como ocorrência de constipação. Crianças que ingerem muito leite e comem pouca comida recebem menor quantidade de fibra na dieta, favorecendo a constipação. Seria importante a abordagem do hábito intestinal da criança, a fim de verificar tanto presença de diarreia ou sangue nas fezes, que poderiam indicar doença orgânica, quanto a possibilidade de constipação. A constipação crônica pode ocasionar dor abdominal recorrente ou crônica, especialmente nos quadros mais graves, quando há retenção de fezes no reto. Nesses casos, a dor abdominal crônica é secundária à constipação funcional, porém não deve ser categorizada como dor funcional, sendo discutível a classificação da dor como orgânica, considerando que nesse caso a etiologia da dor é a constipação funcional.

Na fundamentação teórica serão aprofundados os aspectos da dor abdominal crônica na criança e no adolescente.

Especialização em Saúde da Família
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